Fabiano Novais
Não era nem mais inteligente nem simplório que os da sua convivência. Acordava cedo, passava o vinco da calça e não esquecia de marcar com um xis o número referente ao dia no calendário. Deixava suas chinelas havaianas escorrendo dentro do boxe e ia tomar café. Meio copo de leite para curar a gastrite, não mais que isso. Também, tinha de deixar para o achocolatado dos filhos, que eram os que realmente precisavam. Cresceriam homens estudados, que não teriam de regrar o café da manhã. As crianças devoravam seu lanche rapidamente e a vida corria como em todos os dias. Seu José, era esse seu nome, pensava em como daria a notícia ao Silvino.
“Como direi que não tenho o dinheiro para pagar-lhe? Sei que a quantia não é lá essas coisas, nada que mês e meio de trabalho não dêem jeito. Mas a impressão de mau pagador, essa ficaria. E o valor de um homem, todos sabemos, é sua reputação.
“Poderia pagar-lhe metade hoje e dizer que, por imprevisto, desses que um pai de família não pode fugir à responsabilidade, não poderia honrar a dívida. Com certeza, ele entenderia, e até diria para não me preocupar e guardar essa metade, pois que não tinha precisão este mês e, afinal de contas, amigo é para essas coisas. Não, isso seria desonrar-me. Como olharia nos olhos dele e dos outros do escritório? Notícias como essas espalham-se como penas ao ventilador”.
O movimento preguiçoso da rua dava lugar ao corre-corre de pessoas em direção ao trabalho e crianças que se apressavam para não chegarem atrasadas para a aula do dia. Seu José andava lentamente, pensativo. Distraído, poderiam pensar. No entanto, as preocupações financeiras de um homem honrado só dizem respeito a ele.
Do outro lado da rua, uma mulher arrebatava os olhares dos senhores que jogavam damas na calçada. Seu José apalpou o bolso da camisa à cata dos óculos de ver melhor e deixou cair o bilhete.
— O senhor deixou cair – foi a voz de um estudante, que o fez tirar os olhos de cima da moça e voltar-se para o jovem, num gesto envergonhado, e sorrir como quem pede condescendência
Aproveitando que a lotérica estava no caminho, e que não custava conferir, lá foi ele, rumo à sorte.
Três, quantos eram seus filhos; vinte e sete, a idade em que se casou; trinta e três, do crucificado; e mais três números sem importância para completar, que o jogo também premia as coincidências. Eram os números que recheavam o cartaz na lotérica. Todos, sem tirar um ou outro. Checou de novo, espiou em volta e sorriu, como quem não acredita que a vida premia. De um salto, tomou de novo o caminho do trabalho, para não se atrasar.
Era agora um turbilhão de idéias, uma avalanche de pensamentos tortos e destruidores, que desmontavam sua alma e tornavam a reconstruí-la cada vez num estado diferente. Não sabia onde estava e tornava a virar cada esquina na mesma direção até passar várias vezes em frente ao mesmo local. Poderiam pensar que perdera alguma coisa e que voltava pelo caminho seguido, várias vezes, tentando encontrá-la. E, talvez, estivessem certos. Seu José perdera alguma coisa naquela lotérica, mas não sabia o quê.
Como daria a notícia ao Silvino, sua mulher e filhos? Não poderia dizer a ninguém, pelo menos até ter tudo em mãos e o dinheiro com seu nome no Banco. Com certeza, choveriam pedidos de empréstimo. Os familiares, tão afastados pelo cotidiano pobre de sua vida, se reaproximariam. Voltaria a ser convidado para as festas em casa de tia Odete, que era aquela que se saiu melhor de vida na família. Não, não poderia contar a ninguém. Muito dinheiro em mãos desregradas não dura nem três gerações. “Pai rico, filho nobre, neto pobre”, era esse seu medo, seu presságio se acaso mudasse demais de vida.
As horas passavam e seu José continuava a dobrar sempre para o mesmo lado em cada esquina, até não ser mais notado. Já passava demais da hora em que deveria ter batido o ponto na repartição. “Com certeza, o Silvino estaria pensando que não tenho o dinheiro para pagar-lhe. Já deve ter ligado para pedir notícias, com a falsa preocupação com que os chefes tratam seus subordinados quando pensam estarem sendo enganados. Minha mulher deve estar ouvindo tudo e pensando que algo aconteceu comigo. Um atropelamento, com certeza. Nessa idade, não temos mais o mesmo reflexo de atravessar a rua como antigamente. Nosso corpo não obedece e, quando supomos que saímos, ainda nos encontramos dentro. Meu Deus, já devem estar à minha procura!” E dobrava a esquina novamente à direita.
“E a Clara, quando souber? Todas as suas preocupações cessarão. Aquele vestido branco que viu na vitrine no outro dia. Olhou de soslaio para que eu não percebesse seu encantamento. Nem procurou pelo preço. Com certeza, para não quebrar a magia do momento. Não irá mais precisar cerzir os velhos vestidos.
“De forma alguma poderia mudar de vida tão rápido. Dinheiro na mão é vendaval, como cantam. E se perceberem? Não poderia nem contar aos filhos que, como todos sabem, são os primeiros a contar todos os segredos. E essa dor de cabeça, que não sentia há anos? Será que poderei contar à Clara? Mulher se encanta muito facilmente. Abriria tudo com sua ingenuidade e, sem perceber, estaria dando carne aos leões. Não poderia contar a ela.”
E, dobrando novamente a esquina, não reconheceu mais o lugar em que estava.