Fabiano Novais
Ela aperta o cinto num gesto agressivo. Ele percebe. A madrugada e o vento frio sempre a deixavam com aquela sensação de abandono. Como, quando pequena, fora esquecida dentro do automóvel da família. “Que tipo de mãe esquece a filha dentro do carro?”, seu pai aos berros, enquanto a esposa chorava. E aquilo se repetia dentro da sua cabeça, vinte anos mais tarde.
Seria uma boa mãe, manteria a família coesa, perdoaria as falhas do marido. Afinal, homem é tudo igual. Ela seria diferente, tinha herdado o pragmatismo paterno. E o barulho da chuva abafada eram aplausos ofuscados ao fechar das cortinas de uma grande farsa.
Olhou para o marido, absorto. O olhar perdido entre a ignição e a rua escura à sua frente, que apontava o retorno. Dar a partida, colocar o cinto de segurança, olhar no retrovisor. Tudo o que aprendera aos dezoito anos nos carros de autoescola. Lembrou da sua jovem instrutora, e naquele sorriso de quem sente prazer em ser desejada.
Era muito mais perigoso quando chovia. E se derrapar? Frenar, o nome correto era frenar. Diminuir a marcha, manter a curva aberta, os punhos cerrados num movimento amplo. Não ser brusco e nunca frear. Não deixar que o carro fuja do controle e ter a calma para não procurar a solução mais fácil: o pedal do meio.
Quebrar o silêncio poderia desestabilizar o equilíbrio tênue que se construíra. Somente quem já viveu a intensidade vermelha de um relacionamento a dois sabe do que estou falando. O casal pode encher um copo de mágoa somente até o limite. Depois, tudo passa, as pessoas esquecem, os problemas da vida são como uma borracha que apaga tudo. A paz voltaria a reinar algum dia. A paz possível.
Do outro lado da rua, a silhueta de um rapaz se aproxima. Seu coração começa a bater mais forte e uma sensação de frio abate seu estômago. Com as mãos suando ele coloca o carro em primeira marcha. Não tira os olhos do garoto. Ele tem alguma coisa nas mãos, uma pedra. O ar quente dentro do carro o sufoca. Quase pode sentir as moléculas pesando sobre seu corpo. O vapor quente em sua nuca suada, a mulher chorando baixo, o garoto mais perto.
O sinal abre, ele acelera por instinto, canta pneu. A mulher reclama. Ele não está transportando porco, ela diz. Abre o vidro do carro. O ar entra trazendo a vida de volta. Seu corpo sente o frio cortante da chuva. Ele não reclama, está a salvo.
O coração volta a bater cadenciado dentro do peito. Olha para a esposa e não a reconhece. Não se reconhece. Tudo era distante e trágico. Sua vida, suas escolhas, a cidade estranha e opressiva. Era hora de acabar com aquilo. Salvara-se há pouco. Deveria agradecer por outra chance de começar uma vida que valha à pena. Recomeçaria.
- Cuidado! Você não está vendo a... – e é interrompida pela colisão. Barulho, vidros despedaçados para todo lado, carro rodando.
Olha pelo retrovisor, uma mulher estirada no chão, como um pedaço de carne sem vida no meio da via. Deus é mesmo um gozador, lamenta-se. Seus sonhos novamente engavetados, como o primeiro capítulo do livro que nunca finalizou.
E, nesse instante, ele ouve sua mulher, quase como um sussurro vindo do seu próprio interior:
- Não para. Ninguém viu nada. Não para, não para.